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Engolindo a SAP

Engolindo a SAP

Helio Gurovitz, de EXAME
O consultor, de paletó escuro, corte impecável, a gravata vermelha empertigada ao pescoço, fecha a porta azul, dirige um olhar à recepcionista e sai cantarolando um sambinha de Zé Kéti: - Se alguém perguntar por mim... Ela está sentada a uma mesa em forma de meia-lua. Acima da mesa, cinco televisores transmitem simultaneamente, para quem está sentado em um dos quatro sofás azuis da sala de espera, o relato de como o alpinista mexicano Andrés Delgado Calderón chegou ao cume do monte Everest. A recepcionista completa o samba, sem desafinar: - ...Diz que fui por aí. Estamos no décimo oitavo andar de um prédio prateado de linhas futuristas, à margem do Rio Pinheiros, em São Paulo. O edifício foi construído para abrigar a Bolsa de Imóveis e leva no alto o logotipo do banco HSBC Bamerindus. Mas estamos nos escritórios da subsidiária brasileira da empresa alemã de software SAP. Mais que ninguém, os alemães da SAP, nos últimos dois anos, foram por aí. Foram, na verdade, parar em toda parte, em toda empresa, em todo canto do planeta. Da Bayer à Volkswagen, da Aracruz à Zeneca, do alto do Everest ao barco com que o marujo Amyr Klink pretende circunavegar a Antártida, o logotipo azul com as três letras SAP, sigla em alemão para Systemanalyse und Programmentwicklung (engasgou? pois só quer dizer "análise de sistemas e desenvolvimento de programas"), conquistou o mundo corporativo. A SAP cresceu 62% em 1997, atingindo vendas globais de 3,46 bilhões de dólares - 81% fora da Alemanha - e lucros de 532 milhões de dólares. Tais números fazem dela a quarta empresa de software do planeta em faturamento. No Brasil, a sigla SAP era pouquíssimo conhecida em 1995, ano em que os alemães de Walldorf, cidade próxima a Heidelberg, resolveram aportar por aqui. Pois ela fechou 1997 faturando no país 73,2 milhões de dólares, 159% a mais que em 1996. Hoje, a empresa já conquistou 182 clientes brasileiros, 78 deles entre as 500 maiores empresas, de acordo com o último anuário MELHORES & MAIORES, editado por EXAME. A SAP Brasil pode facilmente fechar 1998 com um faturamento em torno de 120 milhões de dólares. "Parece que SAP ganhou na loteria", diz Fernando Meirelles, professor da Fundação Getúlio Vargas especialista no uso de computadores em empresas. TEMPO REAL - Parece mesmo. Hoje em dia, se você sair perguntando nas empresas brasileiras o que é SAP, vai perceber que são poucos os que ainda confundem a companhia com a tecla da televisão que permite ouvir filmes no idioma original. Uns dirão que o SAP (afinal, ninguém chama o software da empresa pelo nome oficial: R/3) é um programa de computador complicado que anda fazendo muito sucesso no departamento de informática. Outros, mais informados, vão criticar o produto por ser caro, chato, pesado, difícil de implantar. Vão falar que ele só funciona se uma legião de consultores ficar retorcendo a empresa em todas as direções por um bom par de anos - regiamente paga para isso -, até finalmente virar tudo de cabeça para baixo. Os mais entusiastas, porém, serão os primeiros a garantir que, por trás do SAP, está o elo perdido da computação, o santo graal dos executivos: todas as informações da empresa na ponta dos dedos, em tempo real, de modo correto, seguro e sem contradição. Por trás do SAP, dirão os entusiastas, está o segredo para ganhar produtividade em um mundo - que o leitor perdoe os chavões - cada vez mais competitivo, eficiente, ágil e globalizado. Em parte, todos terão razão. A SAP vende um único produto: o R/3. Ele pertence à família dos chamados softwares integrados de gestão empresarial (grifo na palavra integrado). Que bicho é isso? Melhor dar um exemplo. A Votorantim Celulose e Papel (VCP), empresa do grupo Votorantim que faturou 718 milhões de dólares em 1997, terminou há pouco mais de um mês de implantar o R/3. "É o sonho de todo diretor financeiro. A vida inteira quis um sistema desses", diz Valdir Roque, diretor financeiro e de relações com o mercado da empresa. Não à toa. De Marselha, onde ele teve o azar de presenciar in loco a derrota da seleção brasileira diante da Noruega, Roque podia saber tudo o que acontecia dentro da empresa. Quanto vendeu naquele dia? Por produto? Por fábrica? Por cliente? Quanto dinheiro saiu do caixa? Quanto cada produto deu de margem de lucro? Quais os clientes mais lucrativos? Quanto papel tem em estoque? Quanto produziu a máquina C1, da unidade de Ribeirão Preto, que faz o popular sulfite Copimax? E por aí afora. Roque estima que, graças à agilidade no fluxo de informação, pode haver uma melhora entre 30% e 40% no giro de estoque. O número de funcionários administrativos deve cair no mínimo 30%, pois todo o trabalho braçal de consolidação de informações se tornou dispensável. A economia anual é estimada em 6 milhões de dólares. O xis da questão é que todas as informações da empresa estão integradas, e o próprio programa é capaz de tomar sozinho algumas decisões. No instante em que o gerente Marco Aurélio da Silva emite um pedido, imediatamente altera-se o planejamento de vendas, aciona-se a fábrica de papel, compra-se a matéria-prima necessária e já é possível dar ao cliente uma boa estimativa do prazo de entrega. O fechamento contábil do mês, uma lengalenga em que relatórios ficavam pelo menos 20 dias viajando de um lado para outro, praticamente deixa de existir. Os resultados fiscais, que em breve estarão disponíveis quase em tempo real, vão depender apenas da aprovação de auditores externos e podem sair em dois ou três dias. Tudo isso custou à VCP 12 milhões de dólares e 19 meses, em que a empresa se viu envolvida com uma tropa de choque da Andersen Consulting e teve de alocar 45 entre os melhores funcionários de cada departamento exclusivamente para o projeto SAP. É caro. Muito caro. Para não falar no maior risco que uma empresa corre ao surfar nessa onda: estourar prazos e orçamentos para no final descobrir que os benefícios não são tão grandes quanto se esperava. Se a VCP conseguiu implantar o sistema relativamente dentro das condições previstas (o prazo só teve de ser ampliado de 13 para 19 meses), não são raros casos de três, quatro ou até cinco anos de implantação. "O R/3 não é só um software. Com ele, é preciso mudar todo o estilo de gestão da empresa", diz Roque. Compensa? A resposta é: depende. "Acredito firmemente que o SAP não é a melhor resposta para qualquer empresa", disse a EXAME Sam Wee, sócio da Benchmarking Partners, consultoria americana que avalia pacotes integrados de gestão. "O R/3 espera de um negócio mais disciplina do que a maioria dos negócios tem." O problema, de acordo com Wee, é que o software é flexível demais. São mais de 60 000 transações, 15 000 tabelas de dados, com quase 2 milhões de telas possíveis. Ele foi feito para acomodar todo tipo de processo, todo tipo de negócio, da refinação de petróleo à revenda de automóveis usados. Isso gera dois problemas. O primeiro é encontrar, nesse emaranhado, a configuração que melhor se adapta a cada empresa. Depois, uma vez instalado o programa, é preciso que os dados sejam fornecidos corretamente por quem o usa, senão os erros também se propagam em tempo real. Wee cita como exemplo a Computer Vision, empresa de software onde ele próprio trabalhou como diretor de tecnologia. "Queríamos integrar as operações em todos os países. Clientes globais como a Aerospatiale estavam cansados de fazer compras em quatro países diferentes, de quatro empresas diferentes. Com o SAP, eles poderiam comprar de uma única empresa global", diz Wee. CUSTO-BENEFÍCIO - Isso deu certo. Um pedido feito por um representante antes ia por fax até o departamento de vendas, daí para a manufatura, que solicitaria uma fatura antes de iniciar a produção. Uma encomenda feita na Alemanha para um distribuidor na Bélgica, com manufatura nos Estados Unidos, poderia levar até dois meses para ser entregue. Com o SAP, cada representante de vendas recebeu um notebook capaz de acessar o sistema. Se ele fizer uma encomenda até três da tarde, ela pode ser despachada em 36 horas. Ótimo! Só que, se ele cometer um erro mínimo, de um único dígito, pode disparar a fabricação de 10 000 unidades quando só vendeu 1 000. E não há mais dois meses antes da entrega para corrigir o erro. "Obviamente, a força de vendas não gostou disso", diz Wee. Mesmo assim, o número de erros caiu de 18% para 6,5% das faturas, porque o próprio R/3 consegue fazer muitas verificações sozinho. No geral, a Computer Vision saiu ganhando. O que é absolutamente necessário ao adotar o SAP ou qualquer concorrente é ter uma idéia do que se ganha e do que se perde. Um estudo da Benchmarking Partners avalia que 30% das empresas não fazem um estudo detalhado dos custos e benefícios econômicos. "A maioria só faz tal estudo depois que a implementação já começou", diz Mathias Mangels, sócio da Symnetics, consultoria que representa a Benchmarking Partners no Brasil. Considere o caso da Bosch, uma das primeiras a encarar o R/3, já em 1992. "Adotamos o programa como parte de uma política global", diz José Luis Moraes Barboza, gerente da Bosch brasileira. "A integração da empresa e substituição dos sistemas antigos foram os fatores cruciais. Ainda é cedo para falar em redução de custos." De acordo com Mangels, ainda não há referências concretas de projetos acabados no país. Mas, se não há uma idéia clara de quais benefícios o R/3 pode trazer, qual então o segredo da SAP para vendê-lo feito pão quente? CAPITÃO SAP - Tente perguntar a quem vende. Ao gerente da SAP Brasil Orlando Barbieri, por exemplo: "Não vendo porque sou bonito. Tenho um produtaço. Vender para uma pessoa só é mole. Basta convidar pra jantar e dar um porre. Mas já demorei três anos para vender a uma única empresa". Com 46 anos e 1,86 metro de altura, Barbieri ficou conhecido no mercado como Capitão SAP, depois que ganhou um prêmio como o melhor vendedor das Américas em 1997. Não tem secretária e, sozinho, faturou para a SAP mais de 18 milhões de dólares ano passado (quase 100 000 dólares para cada centímetro de altura). Caçula entre sete irmãos, Barbieri se formou no disputado Instituto Militar de Engenharia, no Rio de Janeiro. No primeiro emprego que teve, já ganhou um prêmio pelo desempenho nas vendas ("sorte de principiante", brinca). Também trabalhou por dois anos desenvolvendo softwares em Dortmund, Alemanha, para uma pequena empresa. Seu método de venda: mapear os clientes em um ramo da indústria, encontrar a pessoa certa dentro de cada empresa para patrocinar o SAP e fazer um extenso trabalho de evangelização de todos os demais, mostrando os eventuais benefícios do programa. "Haja diplomacia. É preciso tocar nos problemas de gestão da empresa, sem melindrar a cultura interna", diz ele. Nessa engenharia social, Barbieri se mostrou um mestre incomparável. Também, com tanto dinheiro à vista, pudera. Barbieri diz que ainda não parou para contar quanto já ganhou na SAP. De acordo com ex-funcionários, as comissões na SAP Brasil variam entre 5% e 10% das vendas, sem nenhum limite. Em 1997, portanto, ele teria amealhado em torno de 1 milhão de dólares. Pode ser um exagero. Nos corredores da empresa, todos dizem que o Capitão SAP ganhou no ano passado mais dinheiro que o próprio presidente da empresa, Augusto Pinto. Além do Honda novinho em folha que dirige, Barbieri acaba de dar um Audi de aniversário à mulher. "É. A gente acaba cedendo", diz ele. A remuneração variável não se restringe aos vendedores. "Todos os funcionários são remunerados em função da satisfação do cliente", diz Augusto Pinto. "Fazemos uma pesquisa anual e, se a nota média dada pelos clientes for menor que sete e meio, todos perdem salário, como num esquema de multa." A parcela variável começa em 15% do salário e, no limite, atinge metade do que ganha um funcionário, excetuados casos excepcionais. Essa é uma política da SAP no mundo todo. Mas Augusto Pinto implantou na subsidiária brasileira um estilo peculiar de gestão. Além dos fatores que fizeram do R/3 um best-seller mundial, boa parte do sucesso da SAP por aqui pode ser atribuída a ele. Augusto, como ele é chamado por todos, é originário da IBM, assim como os cinco fundadores da SAP. Um pequeno parêntese histórico: (Os alemães Hasso Plattner, Dietmar Hopp e três colegas largaram a subsidiária em Mannheim da maior empresa de informática do mundo em 1972, pois seus chefes se recusaram a continuar financiando o programa de gestão financeira que eles desenvolviam. Fora da empresa, o sistema se converteu no R/2, para computadores de grande porte. Em 1992, os alemães cometeram uma espécie de haraquiri que deu certo: lançaram o R/3, para redes de micros, desafiando todos os temores de que ele mataria o R/2, a então galinha dos ovos de ouro. Detalhe: o desenvolvimento do R/3 custou na época ao redor de 500 milhões de dólares, o que equivalia aproximadamente a todo o faturamento da SAP.) ANO DE TRÉGUA - Fecha parêntese. Augusto, dizíamos, também veio da IBM. "A IBM é uma escola para qualquer tipo de executivo de informática. Quem passou por lá se escolou em tecnologia, no mercado e ao mesmo tempo se treinou dentro de uma multinacional", diz Carlos Gomide Ribeiro, outro ex-IBM que preside a J.D. Edwards do Brasil, uma das concorrentes da SAP. (Note que a Oracle, outra concorrente, também é presidida por um ex-IBM, Márcio Kaiser.) Em 1991, depois de 19 anos na Big Blue, Augusto, a exemplo de Plattner e companhia 20 anos antes, estava insatisfeito: "O discurso da empresa não batia com a prática. Eles falavam muito em satisfazer o cliente, mas ainda não vendiam uma solução total". Na época, o alemão Karl Thieme, então presidente da filial brasileira da Origin, já estudava a possibilidade de trazer a SAP para o Brasil. Os executivos de Walldorf resistiam. O maior obstáculo: devido à inflação, os valores em moeda brasileira corrente não cabiam nos campos reservados para eles no software R/2 e daria muito trabalho adaptar o programa. Com o lançamento do R/3 em 1992 e a estabilização econômica em 1994, o jogo mudou. "O primeiro plano de negócios da SAP Brasil foi feito na minha casa", conta Thieme, hoje vice-presidente da empresa de serviços de informática CPM. A SAP não acreditou no mercado. Ele sim. Thieme, com um brilho nos olhos e um português ainda carregado, conta orgulhoso como contratou Augusto Pinto em 1994 para montar, dentro da Origin, um departamento para vender o R/3: "Acho que acerrtei, non?". Paralelamente, a Origin também vendia o pacote integrado de gestão da Baan, rival holandesa da SAP. Até que, em 1995, os alemães de Walldorf descobriram o Brasil e recompraram da Origin os direitos de venda do R/3 no país. "Se tivéssemos chánce, terríamos ficado com a operraçon", diz Thieme. Para comandar a SAP Brasil, os alemães escolheram - adivinhe quem? - Augusto Pinto. "Eles confiaram em mim. Deram um ano de trégua para que a gente pudesse tropicalizar o produto", diz Augusto. "Então eu consegui fazer na SAP aquilo que tinha tentado durante 19 anos na IBM." O momento era bom. Empresas globais precisavam de um sistema para unificar operações mundo afora? Pois o R/3 fala um sem-número de idiomas e vem programado com legislações fiscais da Itália a Cingapura. Havia no Brasil, com a economia estável, necessidade de adotar práticas internacionais de gestão? Pois o R/3 vem com "n" práticas de gestão embutidas, para os mais variados tipos de negócio. A reengenharia causou uma desilusão porque faltava tecnologia para racionalizar processos e cortar custos? Pois o R/3 promete ser tal tecnologia. É preciso trocar os programas de computador por causa do bug do milênio, o erro que afeta sistemas antigos despreparados para a chegada do ano 2000? Pois, com o R/3, dá para se livrar a um só tempo dos custosos computadores de grande porte e do bug do milênio. O que mais intriga na SAP é como uma empresa não-americana conseguiu usar todo esse movimento a seu favor e se transformar no maior fenômeno da indústria de software nos dias atuais. Por que a SAP e não uma concorrente americana como Oracle, Peoplesoft ou J.D. Edwards? Por que uma empresa alemã e não a brasileira Datasul ou a holandesa Baan? "A razão para isso", disse a EXAME August-Wilhelm Scheer, professor da Universidade de Saarland, membro do conselho supervisor da SAP e sócio da IDS Scheer, consultoria especializada em R/3, "é que na Europa temos capacidade de lidar com a complexidade de países, leis e moedas. Nos Estados Unidos, sempre quiseram simplificar. Nem sempre dá para simplificar uma empresa global". Outro ponto: a SAP foi pioneira em tecnologia. Lançou o R/3, baseado em redes de micros e em sistemas gráficos como o Windows, da Microsoft, já em 1992, enquanto os concorrentes ainda estavam presos a máquinas de grande e médio porte. (Para dar uma idéia, só este ano Oracle e J.D. Edwards têm no mercado programas comparáveis. "Na época da concorrência para a banda B da telefonia celular, ainda não tínhamos um produto no nível do R/3 para oferecer", diz Wagner Andrade, diretor da área de sistemas de gestão empresa-rial da Oracle do Brasil.) Mas isso não é tudo. A SAP também foi capaz de tirar lições dos acertos e erros da IBM. "Todos os fundadores aprenderam na IBM a pensar em termos globais e a olhar para o cliente em primeiro lugar. Só que a IBM, ao crescer, perdeu essa sensibilidade. A SAP é mais flexível, menos convencida de que pode controlar tudo", diz o professor Scheer. Ele compara Hasso Plattner ao paranóico Andy Grove, que até há pouco era executivo-chefe da Intel: "Plattner está sempre olhando ao redor para os competidores". No caso da disputa com Larry Ellison, presidente mundial da Oracle, ele nem precisa fazer muito esforço. Volta e meia os dois velejadores amadores se enfrentam em uma regata (na última, parece que Ellison levou a melhor). CHEFE E ÍNDIO - Atípica para uma empresa alemã, a SAP foi criada dentro de uma informalidade incomum até no Vale do Silício. Ela era, por isso, o meio de cultura ideal para que as idéias de gestão de Augusto Pinto florescessem. Augusto não veleja, mas pode ser visto correndo no Parque do Ibirapuera quase toda manhã (ou na Cidade Universitária, nos fins de semana). Não toca guitarra como Plattner, mas dança e sapateia. Foi, por sinal, com um sapateado que abriu o último SAP Universe, evento promocional que custou quase 1,5 milhão de dólares e reuniu 3 000 pessoas em São Paulo. Fora da empresa, Augusto gosta de vestir bermuda, chinelão e ir bater papo em um boteco. Dentro da SAP, qualquer um tem liberdade de falar com ele ou com qualquer outro, em qualquer parte do mundo. Isso torna mais ágil a resolução de problemas. "Nunca tive uma resposta negativa. Se alguém não responde minhas dúvidas, pelo menos me indica um outro que pode responder", diz Carlos Aristeu Rosolem, gerente de vendas da SAP. Esse princípio é naturalmente estendido aos clientes. Augusto já espalhou mensagens de e-mail pela empresa toda exigindo que as solicitações de clientes sejam atendidas em no máximo 24 horas. Ele próprio diz responder 100% dos e-mails e telefonemas nesse prazo e liga freqüentemente a clientes para ver se estão satisfeitos. "Se alguém não atender você aqui, pode ligar direto para mim", afirma. O cartão do presidente fica à disposição de quem quiser na recepção da empresa. Mais Augusto Pinto, do legítimo: "Aqui a única diferença entre o chefe e o índio é a capacidade de executar a tarefa." "Já passei por todas as áreas da empresa. Quem não sabe fazer não sabe mandar." "Implantei no Brasil um modelo de gestão que nenhum maluco tinha me deixado implementar." "Sou um neurótico. Uma única pecinha no meio do motor pode estragar todo o BMW." "Quero uma empresa que funcione como a laranja mecânica holandesa. Que pense como uma unidade." "Comandar uma companhia global hoje é como pilotar um Boeing a 10 metros do chão. Dá para fazer vôo visual? Claro que não. É preciso usar um software de gestão." "Já leu A Arte da Guerra, de Sun-Tzu? É preciso conhecer os próprios exércitos e os do inimigo para vencer a guerra. Vender é uma guerra." Dos 300 funcionários da SAP Brasil, Augusto entrevistou pessoalmente os primeiros 150. A pergunta crucial que fazia na hora de recrutar: "Feche os olhos e pense em você daqui a 10 anos. O que está vendo?". Quem engasgou para responder não foi contratado. "Isso quer dizer que o cara não sonha, portanto não me interessa", diz ele. Outro segredo de Augusto: marketing. O tempo todo. Do orçamento de 80 milhões de dólares previsto para 1998, o plano é gastar 6% com isso. Nesse quesito, há algumas soluções engenhosas para economizar dinheiro. A revista da empresa editada para os parceiros, SAPerspectiva, é quase toda financiada com anúncios deles próprios. Os parceiros também dividiram com a SAP os custos do SAP Universe. Quem quisesse assistir às conferências no evento tinha de pagar 300 dólares. Logo que começou a montar a SAP, o escritório de Augusto ficava em cima de uma padaria. No primeiro dia em que chegou para trabalhar, nem mesa havia. No ano passado, ao transferir a sede oficial da empresa para os quatro andares com 5 000 metros quadrados à margem do Pinheiros, a matriz alemã fez exigências sobre a cor azul, o ângulo de inclinação das mesas e queria que todos os móveis fossem importados. Augusto recusou. Negociou a cor do carpete com a Tabacow, montou os móveis por aqui e usou obras de arte nacionais na decoração. Até a mulher do arquiteto contribuiu com pinturas. Os cartazes decorativos vieram da Internet e não chegaram a custar 5 000 dólares. A parede foi pintada com tinta lavável, para cortar custos com pintura. ECOSSISTEMA - Esse tipo de preocupação poderia ser dispensável diante do assombroso crescimento da empresa em dois anos. Para não falar no ecossistema criado em torno da SAP, que tem girado fortunas. Afinal, quem compra o R/3 é candidato a comprar novas máquinas e uma boa dose de serviços de consultores para implantar o programa. "Para cada dólar de licença de software que a SAP vende, estima-se que sejam gastos pelo menos outros dois dólares de consultoria e entre meio e 1,5 dólar de equipamentos", diz José Roberto Schettino Matos, sócio diretor da Andersen Consulting. A valer a estimativa, o negócio SAP como um todo estaria girando até 1 bilhão de dólares este ano no Brasil. Nem tudo vai para os cofres da empresa de Walldorf. Graças à simbiose que a SAP desde o início fez questão de montar com as grandes consultorias e produtores de software e hardware, todo o mercado de informática trabalha a seu favor. "Até hoje a SAP se alavancou nos parceiros, em vez de tentar competir com eles", diz Schettino. A Andersen, por exemplo, faturou 1 milhão de dólares com projetos de implantação do SAP entre setembro de 1995 e agosto de 1996. Para este ano, a previsão é que esse número chegue aos 35 milhões. Na Price Waterhouse Coopers, o SAP deve representar em 1998 um faturamento de 40 milhões, ou 45% do negócio da consultoria no Brasil. "Temos crescido consistentemente 100% nos últimos 2 anos", diz José Luiz Teixeira Rossi, sócio da Price que cuida dos projetos SAP. Nada disso quer dizer que a SAP já tenha ganhado o jogo na disputa com empresas como Datasul, Oracle, J.D. Edwards, Peoplesoft, Baan, SSA ou IFS. No mercado das grandes empresas, a SAP já é tida como soberana. A briga agora é pelas empresas que faturam menos de 300 milhões de dólares. Para elas, não está definido se os altos custos de implantação do R/3 compensam. Outro problema que tem afetado o software desde o início é a adaptação às leis e práticas de negócios brasileiras, conhecida no jargão do ramo como localização ou tropicalização. Como se trata de um programa de escopo geral, especificidades locais são seu ponto fraco. A estratégia da SAP ao abrir sua subsidiária no país foi fazer a localização do produto na Alemanha, a partir de especificações feitas no Brasil. Dessa forma, qualquer multinacional que compra o software em qualquer país já está preparada para fazer negócios no Brasil. Tudo já vem embutido. "Mas foi um parto de mamute explicar aos alemães o que eram coisas como operações triangulares e as diferenças entre os livros fiscais dos estados brasileiros", diz Carlos Kazuo Tomomitsu, hoje diretor da empresa de serviços de informática Aspen Procwork. OPERAÇÃO TRIANGULAR - Kazuo é um contador de 38 anos que, até os 34, não havia lido um único manual de informática. Na SAP até o ano passado, foi ele o responsável pelas especificações das leis brasileiras para os alemães. (Registre-se que Kazuo também tentou explicar a EXAME o que são operações triangulares. Se conseguiu, são outros quinhentos...) Apesar de todos os esforços dele e da empresa, a verdade é que o R/3 ainda não está completamente adaptado a todas as regiões do Brasil. Por isso, estados como Bahia e Pernambuco ou o Triângulo Mineiro foram no ano passado dominados pela concorrente Datasul, empresa catarinense cujo software de gestão ainda é o mais usado no país. "No topo da pirâmide, está sacramentado que a SAP conquistou o mercado", diz Ricardo Santos, diretor de marketing da Datasul. "Mas vai haver nichos em que não será saudável para eles competir conosco." Claro que a SAP tem fôlego para investir nas adaptações locais que quiser. Mas, por enquanto, sua estratégia tem sido focada nos grandes mercados. Carlos Kazuo não deixou a SAP frustrado. Ao contrário, ele estava realizando um sonho. Na Aspen, montou um negócio que deve fechar o primeiro ano com faturamento em torno de 10 milhões de dólares. Seu plano inicial - juntar 1 milhão de dólares em cinco anos - deve ser concretizado em apenas três. Qual o negócio? Treinamento de mão-de-obra especializada em SAP. Recursos humanos são hoje a mercadoria mais escassa nesse mercado. Quem faz a chamada academia, um curso de seis semanas que custa uns 6 000 dólares, pode estar logo ganhando 4 000 reais por mês. A carência por profissionais já virou piada. Diz-se que quem leu uns dois manuais já é considerado consultor sênior. Consultores bons mesmo, experientes na linguagem de programação do R/3, há apenas uns 50 no Brasil. Formar mão-de-obra quando todo mundo está comprando SAP parece ser, portanto, um excelente negócio. Mas Kazuo não pára por aí. De cada academia com 80 alunos que realiza, ele fica com 10 vagas para profissionais que se tornarão consultores em projetos SAP desenvolvidos pela própria Aspen. Dos 180 consultores da empresa, 150 foram formados por ela própria. LEI NÃO ESCRITA - A disputa por mão-de-obra é tanta, que o mercado chegou a estabelecer uma lei não escrita: é considerado antiético para uma consultoria brasileira roubar recursos humanos de outra com ofertas de melhores salários. Só que as propostas também surgem de fora do país, afinal o R/3 é um fenômeno global. Recentemente, um consultor da Andersen que trabalhou em projetos como o da VCP recebeu uma dessas propostas indecentes. Ele ganhava em torno de 40 000 dólares por ano. A Price ofereceu 80 000 anuais para ele trabalhar em Nova York. Para segurá-lo, a Andersen teve de contra-atacar com uma oferta de 120 000 dólares e transferência para um centro de desenvolvimento em Cincinatti, Ohio, também nos Estados Unidos. Nessa selva, Kazuo tem orgulho de dizer que, graças ao tratamento que dispensa a seus funcionários, só perdeu cinco profissionais até hoje. As próprias empresas onde o SAP é instalado acabam enfrentando o mesmo problema. Em outubro passado, o líder do projeto SAP na VCP, José Roberto Conte, trocou a empresa por uma pequena consultoria com sede em Joinville, a WA. Sua nova missão: formar profissionais (quando deu entrevista a EXAME, já havia formado 16). Para empresas que instalam o R/3 há um risco evidente. É preciso alocar os melhores quadros no projeto SAP, pois só eles têm a compreensão geral do negócio necessária para a programação do sistema. Mas depois eles podem bater asas atrás do dinheiro que gira em torno do fenômeno SAP. Na VCP, outro funcionário que se tornou especialista no R/3 ganhava 2 000 reais. Resultado: foi arrebatado por uma consultoria pelo quádruplo. O fenômeno SAP de certa forma lembra o que ocorria com a IBM no início dos anos 70. Na época, dizia-se que nenhum diretor de informática seria demitido por comprar IBM. Ninguém ousava contestar a decisão de comprar do líder no mercado mundial. Hoje, o mesmo acontece com a SAP (o logotipo da empresa também é azul). Se alguém escolher algum concorrente - e eles não faltam -, terá na certa de se justificar diante dos superiores. Terá de explicar por que não escolheu aquele que todo mundo usa: o R/3. "Se der errado, ele vai dizer que comprou o que todos compraram", diz José Carlos Gouveia, diretor para a América Latina da Peoplesoft, outra concorrente da SAP. Só que, com seu produto único, a empresa alemã continua um indiscutível sucesso de público. "Aqui tocamos um samba de uma nota s", diz Genivaldo Silva, gerente de vendas da SAP que, a exemplo de Orlando Barbieri, já foi premiado duas vezes com viagens para Caribe e Havaí. Um samba que, de Antonio Carlos Jobim a Zé Keti, não tem desafinado sob a batuta de Augusto Pinto. Pelo menos por enquanto. 
 

 

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