Engolindo a SAP
Engolindo a SAP
Helio Gurovitz, de EXAME
O consultor, de paletó escuro, corte impecável, a gravata vermelha
empertigada ao pescoço, fecha a porta azul, dirige um olhar à
recepcionista e sai cantarolando um sambinha de Zé Kéti:
- Se alguém perguntar por mim...
Ela está sentada a uma mesa em forma de meia-lua. Acima da mesa, cinco
televisores transmitem simultaneamente, para quem está sentado em um dos
quatro sofás azuis da sala de espera, o relato de como o alpinista
mexicano Andrés Delgado Calderón chegou ao cume do monte Everest. A
recepcionista completa o samba, sem desafinar:
- ...Diz que fui por aí.
Estamos no décimo oitavo andar de um prédio prateado de linhas
futuristas, à margem do Rio Pinheiros, em São Paulo. O edifício foi
construído para abrigar a Bolsa de Imóveis e leva no alto o logotipo do
banco HSBC Bamerindus. Mas estamos nos escritórios da subsidiária
brasileira da empresa alemã de software SAP. Mais que ninguém, os
alemães da SAP, nos últimos dois anos, foram por aí. Foram, na verdade,
parar em toda parte, em toda empresa, em todo canto do planeta. Da Bayer
à Volkswagen, da Aracruz à Zeneca, do alto do Everest ao barco com que o
marujo Amyr Klink pretende circunavegar a Antártida, o logotipo azul
com as três letras SAP, sigla em alemão para Systemanalyse und
Programmentwicklung (engasgou? pois só quer dizer "análise de sistemas e
desenvolvimento de programas"), conquistou o mundo corporativo.
A SAP cresceu 62% em 1997, atingindo vendas globais de 3,46 bilhões de
dólares - 81% fora da Alemanha - e lucros de 532 milhões de dólares.
Tais números fazem dela a quarta empresa de software do planeta em
faturamento. No Brasil, a sigla SAP era pouquíssimo conhecida em 1995,
ano em que os alemães de Walldorf, cidade próxima a Heidelberg,
resolveram aportar por aqui. Pois ela fechou 1997 faturando no país 73,2
milhões de dólares, 159% a mais que em 1996. Hoje, a empresa já
conquistou 182 clientes brasileiros, 78 deles entre as 500 maiores
empresas, de acordo com o último anuário MELHORES & MAIORES, editado
por EXAME. A SAP Brasil pode facilmente fechar 1998 com um faturamento
em torno de 120 milhões de dólares. "Parece que SAP ganhou na loteria",
diz Fernando Meirelles, professor da Fundação Getúlio Vargas
especialista no uso de computadores em empresas.
TEMPO REAL - Parece mesmo. Hoje em dia, se você sair perguntando
nas empresas brasileiras o que é SAP, vai perceber que são poucos os que
ainda confundem a companhia com a tecla da televisão que permite ouvir
filmes no idioma original. Uns dirão que o SAP (afinal, ninguém chama o
software da empresa pelo nome oficial: R/3) é um programa de computador
complicado que anda fazendo muito sucesso no departamento de
informática. Outros, mais informados, vão criticar o produto por ser
caro, chato, pesado, difícil de implantar. Vão falar que ele só funciona
se uma legião de consultores ficar retorcendo a empresa em todas as
direções por um bom par de anos - regiamente paga para isso -, até
finalmente virar tudo de cabeça para baixo. Os mais entusiastas, porém,
serão os primeiros a garantir que, por trás do SAP, está o elo perdido
da computação, o santo graal dos executivos: todas as informações da
empresa na ponta dos dedos, em tempo real, de modo correto, seguro e sem
contradição. Por trás do SAP, dirão os entusiastas, está o segredo para
ganhar produtividade em um mundo - que o leitor perdoe os chavões -
cada vez mais competitivo, eficiente, ágil e globalizado.
Em parte, todos terão razão.
A SAP vende um único produto: o R/3. Ele pertence à família dos chamados
softwares integrados de gestão empresarial (grifo na palavra
integrado). Que bicho é isso? Melhor dar um exemplo. A Votorantim
Celulose e Papel (VCP), empresa do grupo Votorantim que faturou 718
milhões de dólares em 1997, terminou há pouco mais de um mês de
implantar o R/3. "É o sonho de todo diretor financeiro. A vida inteira
quis um sistema desses", diz Valdir Roque, diretor financeiro e de
relações com o mercado da empresa.
Não à toa. De Marselha, onde ele teve o azar de presenciar in loco a
derrota da seleção brasileira diante da Noruega, Roque podia saber tudo o
que acontecia dentro da empresa. Quanto vendeu naquele dia? Por
produto? Por fábrica? Por cliente? Quanto dinheiro saiu do caixa? Quanto
cada produto deu de margem de lucro? Quais os clientes mais lucrativos?
Quanto papel tem em estoque? Quanto produziu a máquina C1, da unidade
de Ribeirão Preto, que faz o popular sulfite Copimax? E por aí afora.
Roque estima que, graças à agilidade no fluxo de informação, pode haver
uma melhora entre 30% e 40% no giro de estoque. O número de funcionários
administrativos deve cair no mínimo 30%, pois todo o trabalho braçal de
consolidação de informações se tornou dispensável. A economia anual é
estimada em 6 milhões de dólares.
O xis da questão é que todas as informações da empresa estão integradas,
e o próprio programa é capaz de tomar sozinho algumas decisões. No
instante em que o gerente Marco Aurélio da Silva emite um pedido,
imediatamente altera-se o planejamento de vendas, aciona-se a fábrica de
papel, compra-se a matéria-prima necessária e já é possível dar ao
cliente uma boa estimativa do prazo de entrega. O fechamento contábil do
mês, uma lengalenga em que relatórios ficavam pelo menos 20 dias
viajando de um lado para outro, praticamente deixa de existir.
Os resultados fiscais, que em breve estarão disponíveis quase em tempo
real, vão depender apenas da aprovação de auditores externos e podem
sair em dois ou três dias. Tudo isso custou à VCP 12 milhões de dólares e
19 meses, em que a empresa se viu envolvida com uma tropa de choque da
Andersen Consulting e teve de alocar 45 entre os melhores funcionários
de cada departamento exclusivamente para o projeto SAP.
É caro. Muito caro. Para não falar no maior risco que uma empresa corre
ao surfar nessa onda: estourar prazos e orçamentos para no final
descobrir que os benefícios não são tão grandes quanto se esperava. Se a
VCP conseguiu implantar o sistema relativamente dentro das condições
previstas (o prazo só teve de ser ampliado de 13 para 19 meses), não são
raros casos de três, quatro ou até cinco anos de implantação. "O R/3
não é só um software. Com ele, é preciso mudar todo o estilo de gestão
da empresa", diz Roque.
Compensa? A resposta é: depende.
"Acredito firmemente que o SAP não é a melhor resposta para qualquer
empresa", disse a EXAME Sam Wee, sócio da Benchmarking Partners,
consultoria americana que avalia pacotes integrados de gestão. "O R/3
espera de um negócio mais disciplina do que a maioria dos negócios tem."
O problema, de acordo com Wee, é que o software é flexível demais. São
mais de 60 000 transações, 15 000 tabelas de dados, com quase 2 milhões
de telas possíveis. Ele foi feito para acomodar todo tipo de processo,
todo tipo de negócio, da refinação de petróleo à revenda de automóveis
usados. Isso gera dois problemas. O primeiro é encontrar, nesse
emaranhado, a configuração que melhor se adapta a cada empresa. Depois,
uma vez instalado o programa, é preciso que os dados sejam fornecidos
corretamente por quem o usa, senão os erros também se propagam em tempo
real.
Wee cita como exemplo a Computer Vision, empresa de software onde ele
próprio trabalhou como diretor de tecnologia. "Queríamos integrar as
operações em todos os países. Clientes globais como a Aerospatiale
estavam cansados de fazer compras em quatro países diferentes, de quatro
empresas diferentes. Com o SAP, eles poderiam comprar de uma única
empresa global", diz Wee.
CUSTO-BENEFÍCIO - Isso deu certo. Um pedido feito por um
representante antes ia por fax até o departamento de vendas, daí para a
manufatura, que solicitaria uma fatura antes de iniciar a produção. Uma
encomenda feita na Alemanha para um distribuidor na Bélgica, com
manufatura nos Estados Unidos, poderia levar até dois meses para ser
entregue. Com o SAP, cada representante de vendas recebeu um notebook
capaz de acessar o sistema. Se ele fizer uma encomenda até três da
tarde, ela pode ser despachada em 36 horas.
Ótimo! Só que, se ele cometer um erro mínimo, de um único dígito, pode
disparar a fabricação de 10 000 unidades quando só vendeu 1 000. E não
há mais dois meses antes da entrega para corrigir o erro. "Obviamente, a
força de vendas não gostou disso", diz Wee. Mesmo assim, o número de
erros caiu de 18% para 6,5% das faturas, porque o próprio R/3 consegue
fazer muitas verificações sozinho. No geral, a Computer Vision saiu
ganhando.
O que é absolutamente necessário ao adotar o SAP ou qualquer concorrente
é ter uma idéia do que se ganha e do que se perde. Um estudo da
Benchmarking Partners avalia que 30% das empresas não fazem um estudo
detalhado dos custos e benefícios econômicos. "A maioria só faz tal
estudo depois que a implementação já começou", diz Mathias Mangels,
sócio da Symnetics, consultoria que representa a Benchmarking Partners
no Brasil. Considere o caso da Bosch, uma das primeiras a encarar o R/3,
já em 1992. "Adotamos o programa como parte de uma política global",
diz José Luis Moraes Barboza, gerente da Bosch brasileira. "A integração
da empresa e substituição dos sistemas antigos foram os fatores
cruciais. Ainda é cedo para falar em redução de custos." De acordo com
Mangels, ainda não há referências concretas de projetos acabados no
país. Mas, se não há uma idéia clara de quais benefícios o R/3 pode
trazer, qual então o segredo da SAP para vendê-lo feito pão quente?
CAPITÃO SAP - Tente perguntar a quem vende. Ao gerente da SAP
Brasil Orlando Barbieri, por exemplo: "Não vendo porque sou bonito.
Tenho um produtaço. Vender para uma pessoa só é mole. Basta convidar pra
jantar e dar um porre. Mas já demorei três anos para vender a uma única
empresa". Com 46 anos e 1,86 metro de altura, Barbieri ficou conhecido
no mercado como Capitão SAP, depois que ganhou um prêmio como o melhor
vendedor das Américas em 1997. Não tem secretária e, sozinho, faturou
para a SAP mais de 18 milhões de dólares ano passado (quase 100 000
dólares para cada centímetro de altura).
Caçula entre sete irmãos, Barbieri se formou no disputado Instituto
Militar de Engenharia, no Rio de Janeiro. No primeiro emprego que teve,
já ganhou um prêmio pelo desempenho nas vendas ("sorte de principiante",
brinca). Também trabalhou por dois anos desenvolvendo softwares em
Dortmund, Alemanha, para uma pequena empresa. Seu método de venda:
mapear os clientes em um ramo da indústria, encontrar a pessoa certa
dentro de cada empresa para patrocinar o SAP e fazer um extenso trabalho
de evangelização de todos os demais, mostrando os eventuais benefícios
do programa. "Haja diplomacia. É preciso tocar nos problemas de gestão
da empresa, sem melindrar a cultura interna", diz ele. Nessa engenharia
social, Barbieri se mostrou um mestre incomparável. Também, com tanto
dinheiro à vista, pudera.
Barbieri diz que ainda não parou para contar quanto já ganhou na SAP. De
acordo com ex-funcionários, as comissões na SAP Brasil variam entre 5% e
10% das vendas, sem nenhum limite. Em 1997, portanto, ele teria
amealhado em torno de 1 milhão de dólares. Pode ser um exagero. Nos
corredores da empresa, todos dizem que o Capitão SAP ganhou no ano
passado mais dinheiro que o próprio presidente da empresa, Augusto
Pinto. Além do Honda novinho em folha que dirige, Barbieri acaba de dar
um Audi de aniversário à mulher. "É. A gente acaba cedendo", diz ele.
A remuneração variável não se restringe aos vendedores. "Todos os
funcionários são remunerados em função da satisfação do cliente", diz
Augusto Pinto. "Fazemos uma pesquisa anual e, se a nota média dada pelos
clientes for menor que sete e meio, todos perdem salário, como num
esquema de multa." A parcela variável começa em 15% do salário e, no
limite, atinge metade do que ganha um funcionário, excetuados casos
excepcionais. Essa é uma política da SAP no mundo todo. Mas Augusto
Pinto implantou na subsidiária brasileira um estilo peculiar de gestão.
Além dos fatores que fizeram do R/3 um best-seller mundial, boa parte do
sucesso da SAP por aqui pode ser atribuída a ele.
Augusto, como ele é chamado por todos, é originário da IBM, assim como
os cinco fundadores da SAP. Um pequeno parêntese histórico:
(Os alemães Hasso Plattner, Dietmar Hopp e três colegas largaram a
subsidiária em Mannheim da maior empresa de informática do mundo em
1972, pois seus chefes se recusaram a continuar financiando o programa
de gestão financeira que eles desenvolviam. Fora da empresa, o sistema
se converteu no R/2, para computadores de grande porte. Em 1992, os
alemães cometeram uma espécie de haraquiri que deu certo: lançaram o
R/3, para redes de micros, desafiando todos os temores de que ele
mataria o R/2, a então galinha dos ovos de ouro. Detalhe: o
desenvolvimento do R/3 custou na época ao redor de 500 milhões de
dólares, o que equivalia aproximadamente a todo o faturamento da SAP.)
ANO DE TRÉGUA - Fecha parêntese. Augusto, dizíamos, também veio
da IBM. "A IBM é uma escola para qualquer tipo de executivo de
informática. Quem passou por lá se escolou em tecnologia, no mercado e
ao mesmo tempo se treinou dentro de uma multinacional", diz Carlos
Gomide Ribeiro, outro ex-IBM que preside a J.D. Edwards do Brasil, uma
das concorrentes da SAP. (Note que a Oracle, outra concorrente, também é
presidida por um ex-IBM, Márcio Kaiser.) Em 1991, depois de 19 anos na
Big Blue, Augusto, a exemplo de Plattner e companhia 20 anos antes,
estava insatisfeito: "O discurso da empresa não batia com a prática.
Eles falavam muito em satisfazer o cliente, mas ainda não vendiam uma
solução total".
Na época, o alemão Karl Thieme, então presidente da filial brasileira da
Origin, já estudava a possibilidade de trazer a SAP para o Brasil. Os
executivos de Walldorf resistiam. O maior obstáculo: devido à inflação,
os valores em moeda brasileira corrente não cabiam nos campos reservados
para eles no software R/2 e daria muito trabalho adaptar o programa.
Com o lançamento do R/3 em 1992 e a estabilização econômica em 1994, o
jogo mudou. "O primeiro plano de negócios da SAP Brasil foi feito na
minha casa", conta Thieme, hoje vice-presidente da empresa de serviços
de informática CPM. A SAP não acreditou no mercado. Ele sim. Thieme, com
um brilho nos olhos e um português ainda carregado, conta orgulhoso
como contratou Augusto Pinto em 1994 para montar, dentro da Origin, um
departamento para vender o R/3: "Acho que acerrtei, non?".
Paralelamente, a Origin também vendia o pacote integrado de gestão da
Baan, rival holandesa da SAP.
Até que, em 1995, os alemães de Walldorf descobriram o Brasil e
recompraram da Origin os direitos de venda do R/3 no país. "Se
tivéssemos chánce, terríamos ficado com a operraçon", diz Thieme. Para
comandar a SAP Brasil, os alemães escolheram - adivinhe quem? - Augusto
Pinto. "Eles confiaram em mim. Deram um ano de trégua para que a gente
pudesse tropicalizar o produto", diz Augusto. "Então eu consegui fazer
na SAP aquilo que tinha tentado durante 19 anos na IBM."
O momento era bom. Empresas globais precisavam de um sistema para
unificar operações mundo afora? Pois o R/3 fala um sem-número de idiomas
e vem programado com legislações fiscais da Itália a Cingapura. Havia
no Brasil, com a economia estável, necessidade de adotar práticas
internacionais de gestão? Pois o R/3 vem com "n" práticas de gestão
embutidas, para os mais variados tipos de negócio. A reengenharia causou
uma desilusão porque faltava tecnologia para racionalizar processos e
cortar custos? Pois o R/3 promete ser tal tecnologia. É preciso trocar
os programas de computador por causa do bug do milênio, o erro que afeta
sistemas antigos despreparados para a chegada do ano 2000? Pois, com o
R/3, dá para se livrar a um só tempo dos custosos computadores de grande
porte e do bug do milênio.
O que mais intriga na SAP é como uma empresa não-americana conseguiu
usar todo esse movimento a seu favor e se transformar no maior fenômeno
da indústria de software nos dias atuais. Por que a SAP e não uma
concorrente americana como Oracle, Peoplesoft ou J.D. Edwards? Por que
uma empresa alemã e não a brasileira Datasul ou a holandesa Baan? "A
razão para isso", disse a EXAME August-Wilhelm Scheer, professor da
Universidade de Saarland, membro do conselho supervisor da SAP e sócio
da IDS Scheer, consultoria especializada em R/3, "é que na Europa temos
capacidade de lidar com a complexidade de países, leis e moedas. Nos
Estados Unidos, sempre quiseram simplificar. Nem sempre dá para
simplificar uma empresa global". Outro ponto: a SAP foi pioneira em
tecnologia. Lançou o R/3, baseado em redes de micros e em sistemas
gráficos como o Windows, da Microsoft, já em 1992, enquanto os
concorrentes ainda estavam presos a máquinas de grande e médio porte.
(Para dar uma idéia, só este ano Oracle e J.D. Edwards têm no mercado
programas comparáveis. "Na época da concorrência para a banda B da
telefonia celular, ainda não tínhamos um produto no nível do R/3 para
oferecer", diz Wagner Andrade, diretor da área de sistemas de gestão
empresa-rial da Oracle do Brasil.)
Mas isso não é tudo. A SAP também foi capaz de tirar lições dos acertos e
erros da IBM. "Todos os fundadores aprenderam na IBM a pensar em termos
globais e a olhar para o cliente em primeiro lugar. Só que a IBM, ao
crescer, perdeu essa sensibilidade. A SAP é mais flexível, menos
convencida de que pode controlar tudo", diz o professor Scheer. Ele
compara Hasso Plattner ao paranóico Andy Grove, que até há pouco era
executivo-chefe da Intel: "Plattner está sempre olhando ao redor para os
competidores". No caso da disputa com Larry Ellison, presidente mundial
da Oracle, ele nem precisa fazer muito esforço. Volta e meia os dois
velejadores amadores se enfrentam em uma regata (na última, parece que
Ellison levou a melhor).
CHEFE E ÍNDIO - Atípica para uma empresa alemã, a SAP foi criada
dentro de uma informalidade incomum até no Vale do Silício. Ela era, por
isso, o meio de cultura ideal para que as idéias de gestão de Augusto
Pinto florescessem. Augusto não veleja, mas pode ser visto correndo no
Parque do Ibirapuera quase toda manhã (ou na Cidade Universitária, nos
fins de semana). Não toca guitarra como Plattner, mas dança e sapateia.
Foi, por sinal, com um sapateado que abriu o último SAP Universe, evento
promocional que custou quase 1,5 milhão de dólares e reuniu 3 000
pessoas em São Paulo. Fora da empresa, Augusto gosta de vestir bermuda,
chinelão e ir bater papo em um boteco. Dentro da SAP, qualquer um tem
liberdade de falar com ele ou com qualquer outro, em qualquer parte do
mundo. Isso torna mais ágil a resolução de problemas. "Nunca tive uma
resposta negativa. Se alguém não responde minhas dúvidas, pelo menos me
indica um outro que pode responder", diz Carlos Aristeu Rosolem, gerente
de vendas da SAP.
Esse princípio é naturalmente estendido aos clientes. Augusto já
espalhou mensagens de e-mail pela empresa toda exigindo que as
solicitações de clientes sejam atendidas em no máximo 24 horas. Ele
próprio diz responder 100% dos e-mails e telefonemas nesse prazo e liga
freqüentemente a clientes para ver se estão satisfeitos. "Se alguém não
atender você aqui, pode ligar direto para mim", afirma. O cartão do
presidente fica à disposição de quem quiser na recepção da empresa. Mais
Augusto Pinto, do legítimo:
"Aqui a única diferença entre o chefe e o índio é a capacidade de
executar a tarefa."
"Já passei por todas as áreas da empresa. Quem não sabe fazer não sabe
mandar."
"Implantei no Brasil um modelo de gestão que nenhum maluco tinha me
deixado implementar."
"Sou um neurótico. Uma única pecinha no meio do motor pode estragar todo
o BMW."
"Quero uma empresa que funcione como a laranja mecânica holandesa. Que
pense como uma unidade."
"Comandar uma companhia global hoje é como pilotar um Boeing a 10 metros
do chão. Dá para fazer vôo visual? Claro que não. É preciso usar um
software de gestão."
"Já leu A Arte da Guerra, de Sun-Tzu? É preciso conhecer os próprios
exércitos e os do inimigo para vencer a guerra. Vender é uma guerra."
Dos 300 funcionários da SAP Brasil, Augusto entrevistou pessoalmente os
primeiros 150. A pergunta crucial que fazia na hora de recrutar: "Feche
os olhos e pense em você daqui a 10 anos. O que está vendo?". Quem
engasgou para responder não foi contratado. "Isso quer dizer que o cara
não sonha, portanto não me interessa", diz ele. Outro segredo de
Augusto: marketing. O tempo todo. Do orçamento de 80 milhões de dólares
previsto para 1998, o plano é gastar 6% com isso. Nesse quesito, há
algumas soluções engenhosas para economizar dinheiro. A revista da
empresa editada para os parceiros, SAPerspectiva, é quase toda
financiada com anúncios deles próprios. Os parceiros também dividiram
com a SAP os custos do SAP Universe. Quem quisesse assistir às
conferências no evento tinha de pagar 300 dólares.
Logo que começou a montar a SAP, o escritório de Augusto ficava em cima
de uma padaria. No primeiro dia em que chegou para trabalhar, nem mesa
havia. No ano passado, ao transferir a sede oficial da empresa para os
quatro andares com 5 000 metros quadrados à margem do Pinheiros, a
matriz alemã fez exigências sobre a cor azul, o ângulo de inclinação das
mesas e queria que todos os móveis fossem importados. Augusto recusou.
Negociou a cor do carpete com a Tabacow, montou os móveis por aqui e
usou obras de arte nacionais na decoração. Até a mulher do arquiteto
contribuiu com pinturas. Os cartazes decorativos vieram da Internet e
não chegaram a custar 5 000 dólares. A parede foi pintada com tinta
lavável, para cortar custos com pintura.
ECOSSISTEMA - Esse tipo de preocupação poderia ser dispensável
diante do assombroso crescimento da empresa em dois anos. Para não falar
no ecossistema criado em torno da SAP, que tem girado fortunas. Afinal,
quem compra o R/3 é candidato a comprar novas máquinas e uma boa dose
de serviços de consultores para implantar o programa. "Para cada dólar
de licença de software que a SAP vende, estima-se que sejam gastos pelo
menos outros dois dólares de consultoria e entre meio e 1,5 dólar de
equipamentos", diz José Roberto Schettino Matos, sócio diretor da
Andersen Consulting. A valer a estimativa, o negócio SAP como um todo
estaria girando até 1 bilhão de dólares este ano no Brasil.
Nem tudo vai para os cofres da empresa de Walldorf. Graças à simbiose
que a SAP desde o início fez questão de montar com as grandes
consultorias e produtores de software e hardware, todo o mercado de
informática trabalha a seu favor. "Até hoje a SAP se alavancou nos
parceiros, em vez de tentar competir com eles", diz Schettino. A
Andersen, por exemplo, faturou 1 milhão de dólares com projetos de
implantação do SAP entre setembro de 1995 e agosto de 1996. Para este
ano, a previsão é que esse número chegue aos 35 milhões. Na Price
Waterhouse Coopers, o SAP deve representar em 1998 um faturamento de 40
milhões, ou 45% do negócio da consultoria no Brasil. "Temos crescido
consistentemente 100% nos últimos 2 anos", diz José Luiz Teixeira Rossi,
sócio da Price que cuida dos projetos SAP.
Nada disso quer dizer que a SAP já tenha ganhado o jogo na disputa com
empresas como Datasul, Oracle, J.D. Edwards, Peoplesoft, Baan, SSA ou
IFS. No mercado das grandes empresas, a SAP já é tida como soberana. A
briga agora é pelas empresas que faturam menos de 300 milhões de
dólares. Para elas, não está definido se os altos custos de implantação
do R/3 compensam. Outro problema que tem afetado o software desde o
início é a adaptação às leis e práticas de negócios brasileiras,
conhecida no jargão do ramo como localização ou tropicalização. Como se
trata de um programa de escopo geral, especificidades locais são seu
ponto fraco.
A estratégia da SAP ao abrir sua subsidiária no país foi fazer a
localização do produto na Alemanha, a partir de especificações feitas no
Brasil. Dessa forma, qualquer multinacional que compra o software em
qualquer país já está preparada para fazer negócios no Brasil. Tudo já
vem embutido. "Mas foi um parto de mamute explicar aos alemães o que
eram coisas como operações triangulares e as diferenças entre os livros
fiscais dos estados brasileiros", diz Carlos Kazuo Tomomitsu, hoje
diretor da empresa de serviços de informática Aspen Procwork.
OPERAÇÃO TRIANGULAR - Kazuo é um contador de 38 anos que, até os
34, não havia lido um único manual de informática. Na SAP até o ano
passado, foi ele o responsável pelas especificações das leis brasileiras
para os alemães. (Registre-se que Kazuo também tentou explicar a EXAME o
que são operações triangulares. Se conseguiu, são outros quinhentos...)
Apesar de todos os esforços dele e da empresa, a verdade é que o R/3
ainda não está completamente adaptado a todas as regiões do Brasil. Por
isso, estados como Bahia e Pernambuco ou o Triângulo Mineiro foram no
ano passado dominados pela concorrente Datasul, empresa catarinense cujo
software de gestão ainda é o mais usado no país. "No topo da pirâmide,
está sacramentado que a SAP conquistou o mercado", diz Ricardo Santos,
diretor de marketing da Datasul. "Mas vai haver nichos em que não será
saudável para eles competir conosco." Claro que a SAP tem fôlego para
investir nas adaptações locais que quiser. Mas, por enquanto, sua
estratégia tem sido focada nos grandes mercados.
Carlos Kazuo não deixou a SAP frustrado. Ao contrário, ele estava
realizando um sonho. Na Aspen, montou um negócio que deve fechar o
primeiro ano com faturamento em torno de 10 milhões de dólares. Seu
plano inicial - juntar 1 milhão de dólares em cinco anos - deve ser
concretizado em apenas três. Qual o negócio? Treinamento de mão-de-obra
especializada em SAP. Recursos humanos são hoje a mercadoria mais
escassa nesse mercado. Quem faz a chamada academia, um curso de seis
semanas que custa uns 6 000 dólares, pode estar logo ganhando 4 000
reais por mês. A carência por profissionais já virou piada. Diz-se que
quem leu uns dois manuais já é considerado consultor sênior. Consultores
bons mesmo, experientes na linguagem de programação do R/3, há apenas
uns 50 no Brasil. Formar mão-de-obra quando todo mundo está comprando
SAP parece ser, portanto, um excelente negócio. Mas Kazuo não pára por
aí. De cada academia com 80 alunos que realiza, ele fica com 10 vagas
para profissionais que se tornarão consultores em projetos SAP
desenvolvidos pela própria Aspen. Dos 180 consultores da empresa, 150
foram formados por ela própria.
LEI NÃO ESCRITA - A disputa por mão-de-obra é tanta, que o
mercado chegou a estabelecer uma lei não escrita: é considerado
antiético para uma consultoria brasileira roubar recursos humanos de
outra com ofertas de melhores salários. Só que as propostas também
surgem de fora do país, afinal o R/3 é um fenômeno global. Recentemente,
um consultor da Andersen que trabalhou em projetos como o da VCP
recebeu uma dessas propostas indecentes. Ele ganhava em torno de 40 000
dólares por ano. A Price ofereceu 80 000 anuais para ele trabalhar em
Nova York. Para segurá-lo, a Andersen teve de contra-atacar com uma
oferta de 120 000 dólares e transferência para um centro de
desenvolvimento em Cincinatti, Ohio, também nos Estados Unidos. Nessa
selva, Kazuo tem orgulho de dizer que, graças ao tratamento que dispensa
a seus funcionários, só perdeu cinco profissionais até hoje.
As próprias empresas onde o SAP é instalado acabam enfrentando o mesmo
problema. Em outubro passado, o líder do projeto SAP na VCP, José
Roberto Conte, trocou a empresa por uma pequena consultoria com sede em
Joinville, a WA. Sua nova missão: formar profissionais (quando deu
entrevista a EXAME, já havia formado 16). Para empresas que instalam o
R/3 há um risco evidente. É preciso alocar os melhores quadros no
projeto SAP, pois só eles têm a compreensão geral do negócio necessária
para a programação do sistema. Mas depois eles podem bater asas atrás do
dinheiro que gira em torno do fenômeno SAP. Na VCP, outro funcionário
que se tornou especialista no R/3 ganhava 2 000 reais. Resultado: foi
arrebatado por uma consultoria pelo quádruplo.
O fenômeno SAP de certa forma lembra o que ocorria com a IBM no início
dos anos 70. Na época, dizia-se que nenhum diretor de informática seria
demitido por comprar IBM. Ninguém ousava contestar a decisão de comprar
do líder no mercado mundial. Hoje, o mesmo acontece com a SAP (o
logotipo da empresa também é azul). Se alguém escolher algum concorrente
- e eles não faltam -, terá na certa de se justificar diante dos
superiores. Terá de explicar por que não escolheu aquele que todo mundo
usa: o R/3. "Se der errado, ele vai dizer que comprou o que todos
compraram", diz José Carlos Gouveia, diretor para a América Latina da
Peoplesoft, outra concorrente da SAP. Só que, com seu produto único, a
empresa alemã continua um indiscutível sucesso de público. "Aqui tocamos
um samba de uma nota s", diz Genivaldo Silva, gerente de vendas da SAP
que, a exemplo de Orlando Barbieri, já foi premiado duas vezes com
viagens para Caribe e Havaí. Um samba que, de Antonio Carlos Jobim a Zé
Keti, não tem desafinado sob a batuta de Augusto Pinto. Pelo menos por
enquanto.
Comentários
Postar um comentário